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domingo, 17 de julho de 2011

As mulheres negras na construção de uma nova utopia – Angela Davis

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Fundação Cultural Palmares pelo convite para participar desse maravilhoso encontro de mulheres negras, especialmente pelo prazer de poder homenagear Lélia Gonzales, fundadora do Grupo Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. Penso que ela foi uma das figuras mais importantes do movimento negro no Brasil. Sinto-me privilegiada de estar aqui e compartilhar com vocês as nossas lutas, principalmente na medida em que estamos caminhando para o próximo milênio.

Nesse encontro vocês estão discutindo o tema da invisibilidade forçada da mulher negra. Eu sei como isso ocorre. Ao mesmo tempo em que a mulher negra é considerada a mãe da cultura brasileira, ela é ao mesmo tempo invisível. E vocês sabem que nos Estados Unidos as mulheres negras têm lutado há décadas para acabar com essa invisibilidade. Vejam os exemplos das escritoras negras contemporâneas como Toni Morrison e Alice Walker.
Num certo sentido, já percorremos um longo caminho e em outro continuamos invisíveis. Eu faço parte de um comitê que indica pessoas para receberem o prêmio dado por uma entidade negra denominada Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of Colored People/NAACP) e fiquei assustada por encontrar dentre os premiados um número tão pequeno de mulheres negras.
Mesmo quando a gente olha a situação da mulher negra em Hollywood observamos que ela desempenha um papel que lembra a "Mãe Preta". Os papéis desempenhados por Whoopi Godberg, por exemplo, quase sempre são de personagens que facilitam a relação entre pessoas brancas ou que iniciam crianças brancas na maturidade.
Um outro ponto que gostaria de abordar é o fato de que, quando as mulheres negras adquirem mais visibilidade, sempre se trata de mulheres de classe média. Gostaria de voltar ao século XIX, quando existiam clubes de mulheres negras que utilizavam o seguinte slogan: "Puxar para cima enquanto a gente avança". Isso para explicar a relação atual entre as mulheres negras de classe média e as pobres a partir de um novo projeto. Hoje, nos EUA, em função do crescente empobrecimento, as mulheres negras pobres são responsabilizadas pela sua própria miséria. As mães solteiras geralmente estão nos serviços da Previdência Social e são colocadas como as reprodutoras da pobreza e da marginalidade.
Gostaria também de compartilhar com vocês a idéia de um projeto que tem contado com a participação de várias mulheres negras. Ele reúne escritoras e cineastas que passaram a trabalhar juntamente com as mulheres mãe solteiras da Previdência Social. Essa união foi realizada porque acreditamos que algumas de nós ainda têm voz. Algumas de nós são mais visíveis, podem escrever e publicar, são jornalistas. E algumas de nós podem filmar documentários.
Então, as mulheres negras escritoras e cineastas se juntaram com as mães solteiras e essas passaram a contar sua história de vida, que é levada para a imprensa negra, para a revista black e a imprensa em geral. Daí porque nós, mulheres de classe média, decidimos que temos responsabilidade com as mulheres vítimas da pobreza e que vamos puxá-las para cima, ser solidárias ou, como se diz no Brasil, "dar uma força".
Um problema que temos enfrentado, atualmente é o seguinte: na medida em que os negros ascendem socialmente, eles têm deixado para trás sua própria comunidade. Não querem estabelecer nenhuma relação com as mulheres negras da Previdência Social, nem ser relacionados às pessoas negras que estão na prisão. Porém, alguns de nós estão dizendo: "eles são nossos irmãos, e se adquirimos um certo grau de visibilidade, foi em cima dos ombros daqueles que ficaram para trás".
2. O LEGADO DO BLUES E A INFLUÊNCIA NEGRA
Como essa conferência está especificamente proposta para tratar da imagem da mulher negra na sua relação cultural, a partir de agora falarei sobre uma pesquisa onde procuro resgatar a relação entre o cultural e o político (2). Acho importante que a gente olhe para a história de uma maneira não ortodoxa. Quando se chamam hoje os nomes das nossas ancestrais feministas, percebemos que elas foram educadas, escolarizadas. Eram mulheres que podiam escrever. Elas organizaram vários clubes de mulheres no passado.
Mas o que aconteceu com as mulheres que não escreviam? O que aconteceu com a mulher pobre da classe trabalhadora? Existe alguma forma de recuperar a contribuição dessa mulher para o feminismo negro? Por isso, passei a olhar e analisar o blues, observei as mulheres cantoras de blues e me dei conta de que elas encontraram maneiras de conversar sobre o feminismo, falando, por exemplo, de sexualidade. Às mulheres de classe média não era permitido falar sobre sexualidade em público. Isso era um tabu. No contexto do blues, contudo, podia-se explorar qualquer tema relacionado à sexualidade.
Parece-me que essa questão da sexualidade está ligada à luta do povo negro por liberdade. Por que eu digo isso? Porque, se a gente reparar nas condições do povo negro imediatamente após a abolição nos EUA (em 1865), percebemos que ele não tinha liberdade econômica. Havia a demanda por "40 acres de terras e uma mula", mas poucos conseguiram receber os 40 acres de terra. A maioria dos negros não tinha liberdade econômica nem política. Então, no período imediatamente posterior à escravidão, havia três formas através das quais os negros conseguiam ser livres: o direito de ir e vir e deixar as plantações, o direito à educação, pelo qual muitos deram suas próprias vidas, e o direito de escolher seus parceiros sexuais. Essa liberdade em relação à sexualidade incorpora muitas outras aspirações por liberdades. Já que não se tinha liberdade política nem econômica, havia um certo grau de liberdade nas suas vidas sexuais. Quando a gente pega o slogan feminista "o pessoal é político" e o analisa à luz da história do povo negro como escravo, percebemos que o slogan adquire um significado totalmente diferente.
O blues foi a primeira forma artística que emergiu após a abolição. E as mulheres negras dos anos 20 emergem como cantoras de blues, como trabalhadoras, como profissionais, e assim foram gravando músicas. A questão da pesquisa histórica tem muita importância para a nossa luta contemporânea. E nós, acadêmicas e intelectuais, precisamos resgatar essa luta contemporânea por justiça. O grande desafio contemporâneo nos EUA é fazer a ligação entre o público e o privado, entre o pessoal e o político, de maneira a estabelecer a relação entre a violência doméstica e a pública.
Durante muitos anos nosso lema foi a unidade negra ou, talvez, o que se chama de solidariedade racial entre homens e mulheres negras. Freqüentemente, no entanto, o silêncio das mulheres negras diante da violência doméstica tem prejudicado muito suas próprias vidas. A unidade negra da maneira como tem sido formulada protege um companheiro do movimento negro que bate na mulher de responder publicamente por sua atitude, sempre argumentando que "roupa suja se lava em casa". Nós sabemos que a violência de um parceiro sobre a mulher é tão ruim quanto a violência policial.
As mulheres cantoras de blues dos anos 20 sabiam como falar desses problemas que acontecem nos relacionamento, e o faziam abertamente. Mesmo considerando que elas não tinham o vocabulário de que dispomos hoje para tratar do aspecto político da violência doméstica, elas nunca esconderam isso, nunca fingiram que isso não acontecia. E muitas dessas mulheres que cantavam compartilhavam com outras mulheres o fato de que, dentro de uma situação de violência, o que elas deviam fazer é cair fora.
É preciso aprender a estabelecer a relação entre gênero, raça, classe e sexualidade. Nós temos que lutar por saúde física, mental, emocional e espiritual. Sabemos que as mulheres negras norte-americanas têm muito que aprender com as irmãs brasileiras sobre a saúde espiritual. E aprender a reverenciar nossas ancestrais, permitir que elas nos alimentem para que possamos continuar nossa luta. Nós temos que evocar espíritos como o de Aqualtume, o de Beatriz Nascimento e o nome de Lélia Gonzales. Para concluir esta parte, vou declamar um poema muito utilizado para inspirar
as mulheres negras lá nos EUA:
Eu me levanto.
Você pode escrever a minha história com o seu amargor e mentiras.
Você pode me atirar na lama.
Mas, ainda assim, como poeira, eu me levanto.
Você acha que a minha sensualidade incomoda?
Por que você está tão cheio de rancor, tão entristecido e desanimado?
Porque eu vou caminhar como se eu tivesse poços de petróleo na minha sala de estar.
Como a lua e o sol, com a certeza das marés e com esperança.
Pulando bem alto, ainda assim eu me levanto.
Você quer me ver quebrada e com a cabeça e os olhos baixos,
Com os ombros caídos,
Com as lágrimas e enfraquecida pelo meu choro.
A minha dureza ofende você?
Não fique tomando isso como se fosse uma coisa ruim.
Porque eu sorrio como se tivesse minas de ouro em meu quintal.
Você pode me atirar as suas palavras.
Você pode me cortar com seu olhar.
Você pode me matar com o seu ódio.
Mas, ainda assim, como o ar, eu me levanto.
Minha sensualidade incomoda você?
Isso vem como surpresa.
Eu danço como se tivesse diamante no ponto de encontro das minhas coxas.
Fora da vergonha da história eu me levanto bem alto.
Encontro o passado que está enraizado na dor.
Eu me levanto. Eu sou um oceano negro
Indo bem alto e longo, inchando, eu seguro as marés.
E, deixando de lado as noites de terror e de medo,
Eu me levanto ao nascer da manhã que é maravilhosamente clara,
Eu me levanto trazendo os presentes que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança do escravo,
Eu me levanto...
3. A LUTA CONJUNTA POR LIBERDADE
A NAACP foi fundada no início do século XX nos EUA para defender os direitos dos negros. Com algumas de suas alas bem conservadoras e outras mais progressistas, não se pode caracterizar a organização como um todo. Recentemente, pela primeira vez na história, uma mulher foi eleita presidenta dessa entidade, e eu penso que isso é importante. Na comunidade negra norte-americana existe um desejo muito forte de fazer parte da luta. A identidade da comunidade negra foi muito construída em cima de marchas e ações do movimento negro. A partir dos anos 90, porém, não temos mais um movimento negro unificado em torno de uma luta.
A célebre Marcha de Um Milhão de Homens atraiu muitas pessoas com aquele desejo de participar da luta, mas o que sabemos agora é que o movimento dos anos 60 foi masculinista. Assim como eles conquistaram muitas coisas, tornaram a mulher invisível, representaram a liberdade do negro como a liberdade do macho. Partiam do pressuposto de que, uma vez os homens se reunindo para resolver seus problemas, praticamente todos os problemas da comunidade negra estariam resolvidos. E isso não é verdade. Por outro lado, não havia uma análise política sobre quais eram os problemas dos homens. Os organizadores da Marcha chamaram os homens para ir até Washington (EUA) com o apelo sobre o exame de consciência de cada um e basicamente propunham afirmá-los como chefes de família. Enquanto isso, as mulheres foram solicitadas para ficar em casa e cuidar das crianças.
Mas elas não aceitaram esse tipo de proposta. O grande desafio, portanto, é fazer a conexão entre o privado e o público, entre o pessoal e o político, e aceitar a mulher negra como uma parceira igual nessa luta por liberdade. Temos um caminho longo a seguir...
4. O PAPEL DO ARTISTA E A LUTA POLÍTICA (3)
Historicamente, nos EUA, tem-se a idéia de que os artistas existem para promover o entretenimento das pessoas. Dessa maneira, perde-se de vista o profundo papel dos artistas, que é colocar uma nova consciência, uma vez que eles têm recursos visuais e performáticos, usam o corpo como forma de expressão artística, enfim, possuem modos de dizer as coisas que o discurso político não dá conta. Quando se fala de uma pessoa que ficou famosa na Europa, por exemplo, isso é importante caso ela seja uma porta-voz da luta contra o racismo.
Essa atitude para o artista brasileiro é importante porque o Brasil encontra lá fora a idéia do mito da democracia racial. A tradição oral é muito central na nossa cultura. Mas isso também tem seus próprios problemas e contradições, a exemplo da mercantilização da cultura oral, como acontece com a black music nos EUA de hoje. Se isso torna a música disponível no mundo todo, cria, no entanto, uma certa hegemonia da cultura afro-americana, tornando mais difícil reconhecer a cultura original de cada país da diáspora, especialmente quando se observa o tipo de mensagem que vem através das músicas, principalmente na faixa jovem.
5. A POLÍTICA DA ESQUERDA E A QUESTÃO RACIAL
As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.
6. COMO AS FEMINISTAS NEGRAS SE RELACIONAM COM AS MULHERES EM GERAL E COM AS MULHERES NEGRAS EM PARTICULAR
O movimento feminista é tão diverso que eu não sei se a gente pode falar de um só feminismo. Nós temos feministas por toda a parte. Temos feministas no Partido Republicano que são bastante conservadoras politicamente. E mesmo dentre as feministas negras é preciso reconhecer a grande diversidade existente. Algumas mulheres negras se referem a si próprias como mulheristas, usando o termo de Alice Walker. Outras são feministas e fazem um trabalho mais prático, por exemplo, contra a violência sexual. Há também feministas negras que são acadêmicas, como Patrícia Hill Collins, que escreveu um livro sobre o pensamento feminista negro. Dentre todos estes tipos, é evidente que elas não concordam necessariamente umas com as outras, já que muitas são as diferenças.
O desafio consiste em saber como trabalhar com as diferenças e contradições. A diferença pode ser uma porta criativa. Nós não precisamos de homogeneidade nem de mesmice. Não precisamos forçar todas as pessoas a concordar com uma determinada forma de pensar. Isso significa que precisamos aprender a respeitar as diferenças de cada pensar, usando todas as diferenças como uma "fagulha criativa", o que nos auxiliaria a criar pontes de comunicação com pessoas de outros campos. Por exemplo, quando se fala, na Grã Bretanha, de mulheres negras, está se falando de mulheres asiáticas, caribenhas etc.
7. A MULHER NEGRA E A QUESTÃO DA SAÚDE
Eu sou membro do projeto nacional de saúde da mulher negra. Tal projeto não se refere apenas à saúde física, mas também diz respeito à saúde mental, emocional e espiritual, procurando ver a saúde de uma maneira holística. O Instituto Geledés conhece esse projeto porque já participou de várias conferências sobre o assunto (4).
Assim, ao mesmo tempo em que lutamos por um sistema de saúde pública, buscamos criar conceitos para discutir as questões específicas da saúde da mulher negra, que são mais afetadas por diabetes e hipertensão e morrem mais de câncer cervical e de mama que as mulheres brancas.
Há também a questão da auto-estima que estamos abordando nesta conferência. E, de certa forma, mesmo algumas de nós que conseguiram chegar a determinado ponto ainda nos sentimos muito mal com a gente mesmo, nos sentimos inferiores. E as mulheres que se sentem assim terão muita dificuldade para ajudar as mais empobrecidas, sobre cujos ombros elas se apoiaram para poder ascender. Nesse projeto nós temos grupos de mulheres que conversam muito sobre os problemas que as estão incomodando.
8. A GERAÇÃO DE ATIVISTAS DO MOVIMENTO DOS DIREITOS CIVIS
A noção dos direitos civis se tornou importante em termos da definição da luta nos anos 60. Como se pode avaliar politicamente tal situação? A história nos dá capacidade de avaliar o passado a partir do presente. E quando a gente olha para a história, quer sempre enfatizar o que foi mais positivo e nos esquecemos de ver as contradições. Porém, se olhássemos para as contradições ou os problemas, isso nos ajudaria a ir para frente, a avançarmos.
O movimento dos Direitos Civis foi muito importante, mas teve um problema em relação ao papel da mulher na luta que não foi reconhecido. As mulheres organizaram o movimento, organizaram o boicote de Montgomery (Alabama) no ano de 1955. E o que todo mundo sabe é o nome do jovem pastor que as mulheres pediram para que agisse como porta-voz do movimento dos Direitos Civis, um homem chamado Martin Luther King Jr.
Ninguém sabe o nome das mulheres que fizeram o trabalho organizativo. Na medida em que a gente reverenciar o Dr. King, deve ao mesmo tempo criticar o movimento por seu fracasso em reconhecer o papel central que as mulheres desempenharam. Veja um exemplo na imagem de Rosa Lee Parks. Ela é representada como uma mulher que se recusou a dar lugar a um branco no ônibus porque estava cansada. O que geralmente se fala é que ela era uma empregada doméstica que voltava do trabalho e, por conta do seu cansaço, desobedeceu a lei municipal racista do sul dos EUA. E assim originou o movimento em 1955. Como se ela não soubesse o que estava fazendo.
feminismo2
Mas a verdade é que ela era uma pessoa politicamente consciente, era organizada e sabia exatamente o que estava fazendo. Antes dela, duas outras mulheres já haviam sido presas na mesma circunstância, só que esses dois casos anteriores não tiveram sucesso devido a certas condições legais. Rosa Parks foi a terceira tentativa e com sucesso. Isso explica o masculinismo do movimento dos Direitos Civis que a gente deve avaliar e criticar.
Também devemos reconhecer que após trinta anos o discurso dos Direitos Civis não tem o mesmo poder. O mesmo discurso utilizado por Luther King para clamar por justiça para todos é hoje usado por conservadores para propor o desmantelamento das ações afirmativas. As recentes
iniciativas ocorridas na Califórnia – e que são chamadas de "Iniciativa Californiana pelos Direitos Civis" – visam derrubar conquistas da ação afirmativa sob a alegação de que elas conteriam propostas que discriminam os homens brancos a favor de negros, mulheres e pessoas de cor em geral.
Assim, o mesmo tipo de linguagem utilizada pelo movimento dos Direitos Civis está sendo usado atualmente por conservadores para proteger os
privilégios dos homens brancos. Todas as conquistas que obtivemos nos convidam a repensar e reconsiderar as possíveis vitórias futuras. Nada está escrito na pedra. O que é progressivo em determinado contexto pode ser extremamente retrógrado em outro momento da história.
9. A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA UTOPIA
Nos EUA, alguns de nós da esquerda nos baseamos no tipo de discussão que se fazia no Partido Comunista para ajudar a compreender os nossos projetos. Hoje não sou mais membro do Partido Comunista. Alguns de nós estavam lutando para democratizar internamente o Partido. Éramos da direção e assumimos a luta pela democratização, mas não éramos autorizados a concorrer a cargos eletivos. Não conseguimos e perdemos essa luta. Daí porque alguns comunistas e outros socialistas construímos uma nova articulação, uma rede que se chama "Comitê de Correspondência" da era revolucionária nos EUA.
Ainda acredito no socialismo, mesmo conside
rando que os países socialistas já não existem mais como antes. É preciso ver que o capitalismo ainda está muito desenvolvido. Na verdade, o capitalismo globalizado se insinua na vida das pessoas de uma forma que nunca tinha acontecido antes. Basta ver a economia internacional em termos do turismo sexual e a maneira como as mulheres trabalhadoras são exploradas dentro das Américas. Agora as corporações internacionais usam a população negra como o seu porta-voz. Veja o exemplo de Michael Jordan e da Nike, uma empresa que explora os trabalhadores negros dos EUA, da Indonésia e do Vietnã. Nos EUA, nós estamos fazendo uma campanha para boicotar a Nike. Lá temos uma camiseta com o slogan "Não faça isso".
Eu realmente penso que utopia é quando a
gente se move em novas direções e visões. Utopia no sentido de que necessitamos de visões para nos inspirar e ir para frente. Isso tem que ser global. Precisamos achar um modo de dar conta e saber como vamos interligar nossas lutas e visões e chegar a algumas conclusões sobre como desenvolver novos valores revolucionários e, principalmente, como desatrelar valores capitalistas de valores democráticos.
_________________________________
* Angela Yvonne Davis nasceu em 1944 em Birmingham (Alabama). Militante das questões raciais e de classe, foi presa em 1970, acusada de participar de ações armadas promovidas pelos Panteras Negras. Julgada inocente em 1972, depois de quase dois anos de prisão, atualmente é professora do Programa de História da Consciência da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, onde busca articular, numa nova perspectiva, as categorias de classe, raça e sexo, visando a libertação social dos oprimidos.
(1) Conferência realizada no dia 13 de dezembro de 1997, em São Luís (MA), na Iª Jornada Cultural Lélia Gonzales, promovida pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão e pelo Grup
o de Mulheres Negras Mãe Andreza.
(2) A pesquisa se transformou num dos livros de Angela Davis, Blues legacies and black feminism: Gertrude "Ma" Rainey, Bessie Smith and Billie Holliday (Nota da Redação).
(3) Tanto esta como as seções se
guintes resultaram de perguntas formuladas à autora no debate realizado após a exposição.
(4) Sediado em São Paulo (SP), o Geledés – Instituto da Mulher Negra tem como objetivo central combater as diversas formas de discriminação racial. Para maiores informações, ver www.geledes.com.br (Nota da Redação).
22/05/2009 - 16:08

Mulher não é pedaço de carne nem saco de pancadas



As peças de mídia impressa contra a violência doméstica são chocantes e não poderiam ser mais explícitas. Criadas pela agência Bilinki & Groggins de Providence (EUA), mostram um pedaço de carne e um um saco de boxe vestido como mulheres. A campanha é da Rhode Island Coalition Against Domestic Violence (RICADV) e foi concebida para sensibilizar os homens. O texto que acompanha as ilustrações diz: É inaceitável tratar uma mulher como um (pedaço de carne ou saco de pancadas). Muitos homens concordam com isso mas poucos dizem publicamente. Por favor, faça-se ouvido. A voz masculina é uma maneira efetiva para mudar atitudes humilhantes da sociedade em relação às mulheres. A RICADV é uma entidade sem fins lucrativos que congrega seis agências que lutam contra a violência doméstica em Rhode Island. Além do trabalho de prevenção, oferecem apoio jurídico e psicológico a vítimas. Também têm um telefone gratuito para denúncias da população. Com informações do Ads of The World.

sábado, 2 de julho de 2011

A RENAMO e suas mudanças ideológicas na guerra¹

Valdir Alves²

            1. Introdução
Moçambique é um país da costa África Austral, situada na costa do oceano Índico, com cerca de vinte milhões de habitantes empobrecidos pela colonização portuguesa que desde seu início fez de Moçambique uma colônia de exploração.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo estava dividido entre dois grandes blocos econômicos, o capitalista e o socialista, as elites intelectuais moçambicanas, influenciadas por ideal marxista-lenista, fundaram a Frente de Libertação de Moçambique, (FRELIMO), que com exaustivas lutas contra os exércitos portugueses chegam ao poder em 1975, tornando Moçambique independente.
A FRELIMO que antes era apenas uma frente revolucionária agora tinha em suas mãos uma grande missão, um país com treze milhões de pessoas.
[...] mas as condições da luta e da vitória foram tais que os dirigentes da Frelimo herdaram o país sem nunca o terem visto confrontados com essa diversidade social, sem terem sido obrigados a assumi-la e a conceber politicamente os seus efeitos. Eles não dispunham praticamente de nenhum mecanismo político ou social de ligação que lhes permitisse reconhecer a existência dos diferentes componentes, por vezes contraditórios, da sociedade colonizada que lhes era dado governar...Foi de acordo com esta (falta de) perspectiva que foram formuladas os grandes eixos da “estratégia de desenvolvimento” do jovem estado para o mundo rural: a edificação das “aldeias comunais”. ( GEFFRAY, 1981;).

Paralelo as novas mudanças que vinham ocorrendo em Moçambique, chegam a Salisbury, capital da Rodésia, fugindo de Moçambique, comerciantes, pequenos proprietários, assim como ex-soldados.
Para a Rodésia, a independência de Moçambique constituía uma ameaça direta, pois dada a sua situação geográfica estava em condições de controlar o trânsito de grande parte das mercadorias importadas e exportadas, isso junto aos migrantes ressentidos e frustrados virou um ódio.
 Este ódio, junto com incentivo financeiro vindo de países capitalistas como EUA, fez com que se formasse uma tropa mercenária essencialmente composta de antigos soldados, essa milícia era a Mozambique National Resistance, (MNR), que tinha como principal finalidade combater a expansão socialista em Moçambique
A Mozambique National Resistance, assim que chega a solos moçambicanos, para ganhar simpatizantes, deixa de utilizar a sigla em inglês passando a ser conhecida como Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO).
 A partir de então, não só a sigla é modificada mas também suas ideologias no que diz respeito  participação da RENAMO na  Guerra.

2. A Ideologia Capitalista e a Ideologia da Guerra. 
A RENAMO, em sua gênese, por ser composta de pequenos burgueses falidos e ex-soldados portugueses, recebeu recursos bélicos internacionais para que estes militassem e Moçambique deixasse de ser um país comunista, voltando, assim, a viver em um regime monopolista. 
Apesar de todo incentivo bélico e financeiro, a RENAMO logo deixou  seus ideais capitalistas para trás. Um dos motivos foi a estratégia de sobrevivência em solos moçambicanos. A RENAMO começou a atuar em cima da frágil política de modernização da FRELIMO.
A FRELIMO criou políticas que proibiam as práticas religiosas alegando que tais práticas impediam o desenvolvimento de um país em fase de construção. Outro ponto crítico na política da FRELIMO foi a criação das aldeias comunais, que eram aldeias de uso coletivo onde tudo que fosse produzido era dividido para todas as comunidades. Neste período as comunidades rurais eram mais de 80% da população moçambicana.
Diante deste quadro a RENAMO viu a possibilidade de conseguir apoio perante as comunidades rurais. O discurso imprimido foi o de que todos que apoiassem a milícia teriam a liberdade de cultuar suas tradições e não teriam que sair de suas terras para cultivar em terras alheias, como era o propósito das aldeias comunais. Já que as tradições consistiam no cultivo das suas próprias terras.
 A posição da mulher nestas tradições é de extrema importância, principalmente no que diz respeito a religião. Uma das múltiplas identidades assumida pelas mulheres moçambicanas é a de sacerdotisa. Este título é recebido através da possessão dos espíritos. Como diz Honwana, podemos considerar “os espíritos não só como agentes externos que controlam e mudam as identidades das pessoas, mas como a própria essência da identidade humana”.
Por ser a essência da identidade humana, estas mulheres que recebem em seus corpos os espíritos, acabam exercendo grande poder sobre a comunidade moçambicana. Poder que se estende sobre a RENAMO e até mesmo a FRELIMO.
A FRELIMO promove um discurso antitradicionalista, “rotulando-as [as tradições] de obscurantistas e superticionistas.” (HONWOANA, 2002). Imprimindo assim, uma ideologia na qual alegava que as práticas tradicionais não permitiriam a emancipação da mulher, ao contrário da RENAMO, que apoiava o exercício das práticas tradicionalistas
              3. A RENAMO e suas táticas de recrutamento.
             As comunidades apoiaram nos primeiros instantes as milícias, oferecendo alimentos e abrigos. Os jovens das zonas rurais sentiam vontade de entrar para a milícia, por que viam nela uma forma de ascensão. O recrutamento lhes proporcionava, por exemplo, privilégios que eles acreditavam ser os mesmos existentes  na capital, local  este inacessível para os que moravam  no campo.
Porém, a situação na RENAMO não era a que os jovens esperavam. Faltavam armas, porque, ao contrário do que eles pensavam, a RENAMO não possuía um arsenal bem equipado como o da FRELIMO. As armas existentes eram apenas para os comandantes e soldados, o que significa que estes jovens não possuíam qualquer status de poder. Outros privilégios existentes também não eram compartilhados com eles, como a divisão dos saques feitos no território da FRELIMO e as mulheres capturadas, que eram divididas somente entre os comandantes e os considerados soldados.
Os novos recrutas, não eram considerados soldados, não possuíam armas de fogo e nem regalias, o que despertava o desejo de voltar para casa, abandonando a milícia. Para impedir que isto acontecesse a RENAMO aprisionava, torturava e matava muito destes jovens, ocasionando, assim, uma baixa significativa de combatentes.
 Para recompor o seu exército, a RENAMO invadia as comunidades, que antes tinha jurado proteger, em busca de novos recrutas, o que gera um descontentamento dos parentes dos jovens. Para manter-se forte no combate a RENAMO começa a fazer investidas nas comunidades em busca de pessoas para serem integrantes da milícia.
Nestas investidas nas comunidades, eram seqüestrados crianças, mulheres e líderes espirituais, como foi o caso da líder espiritual Mwamadjosi que se tornou uma lenda. Segundo relatos, Mwamadjosi deu imunidade aos soldados que conseguiam tornar-se invisíveis diante dos soldados da FRELIMO, e imune a balas deflagradas por este.
Esta líder espiritual era respeitada até pelos líderes do governo. A história sobre esta mulher diz que ela alcançou um posto de oficial da RENAMO por causa das proezas alcançadas.
Diz-se que Mwamadjosi era muito competente na descoberta das posições  das tropas do Governo e na protecção dos combatentes da Renamo. Ela organiza rituais para imunizar os rebeldes contra as balas antes de partirem para incursões militares. Na Manhiçavmuitos informantes reconhecem os poderes de Mwamadjosi, dizendo que ela conseguia que as balas dos soldados governamentais falhassem o alvo e que suas armas encravassem em pleno combate. Alguns adivinhos e curandeiros locais referiram-se às dificuldades que tiveram para neutralizar os poderes de Mwamadjosi, pois, segundo eles, ela tinha acesso a plantas especiais das florestas de Mambone (a cerca de 400 km de Manhiça).    (HONWANA, 2002.)

Pouco a pouco a RENAMO foi perdendo sua ideologia inicial, pois via que a FRELIMO tinha dificuldade para implantar as novas mudanças sócio-políticas. Por ter uma política de orientação Marxista que direcionava para uma visão materialista da realidade social, deixava de fora todas as práticas tradicionais dos moçambicanos, tais como, as práticas de medicina tradicional como o nyanga (vulgarmente conhecido como curandeiro), e as práticas religiosas, tal como os rituais de chuva e da fertilidade, Kuphahla. Deixavam de lado também, o lobolo³ e as práticas poligâmicas.
A RENAMO obteve apoio da comunidade pois em seus discursos diziam que lutavam contra a FRELIMO, em busca  de uma política que resgatasse as tradições, e a comunidade rural por ter perdido a confiança nos lideres da FRELIMO apoiaram, de início, a RENAMO. 
No entanto, a comunidade rural não demorou a perceber que também não poderiam confiar na RENAMO, pois estes não tinham nenhum tipo de políticas. “Não estamos interessados em definir políticas (...) mais tarde teremos que delinear políticas, mas primeiros o comunismo tem que sair do nosso país. Está a matar-nos, temos que matar por tudo o que queremos. Matamos por comida, por comprimidos, por armas e munições”. (HONWANA, 2002).
Um pouco depois a RENAMO deixou também de ter como meta principal o combate ao regime comunista, usando a guerra pela guerra.
 Um ponto contraditório na RENAMO é o fato de terem mulheres participando em situação de chefia, ao mesmo tempo em que outras mulheres, até mesmo mulheres de suas ex-comunidades, eram violentadas e tinham seus órgãos sexuais amputados tal como os seios, e narizes e orelhas.

   4.Conclusão
           Em linhas gerais, a RENAMO conseguiu permanecer viva na guerra civil em Moçambique por agir como um “vírus mutante” que em cada fase da guerra assumia uma ideologia. No início, era uma milícia com ideias capitalistas posteriormente uma milícia que tinha em seu bojo um “projeto político” que visava à gênese da tradição moçambicana, e por fim a guerra pela guerra.
           A guerra termina com o Acordo Geral de Paz assinado em 1992. A RENAMO passa a participar das eleições em 1994. Ela perde com uma grande diferença de votos, mas se firma como partido político. Hoje a RENAMO é o segundo maior partido de Moçambique, ficando atrás da FRELIMO.
 O presidente é Afonso Dhlakama, ex-comandante do exército que enfrenta forte rejeição popular no país, pois sua imagem ainda é associada aos antigos ideais do apartheid sul-africano, que foi um dos financiadores da milícia na guerra contra a FRELIMO. A RENAMO ocupa hoje um terço das cadeiras no parlamento.

          5. Referências Bibliográficas

FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$frelimo-      (frente-de-libertacao-de-mocambique)>.

GEFFRAY, Christian. A causa das Armas (Antropologia da Guerra contemporânea em Moçambique). Porto, Afrontamento: 1991.


HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Trad. Orlando Mendes; Promédia, 2002.

RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-06-13]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$renamo-(resistencia-nacional-mocambicana)>.

RENAMO (Partido Renamo: A Vitória é Certa!). Disponível em: http://www.renamo.org.mz/news.php

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Notas

¹Este artigo foi criado para a apresentação no Seminário Corpo e Cultura, realizado no Centro de Artes, Humanidades e Letras – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia –, no ano de 2010.


²Cientista Social em formação no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Educador de Ensino em Base Africana (EBA) no Grupo de Ação para Promoção Educacional Científico-Cultural (GAPECC). Membro do Grupo Corpo e Cultura da linha Corpo e Política. Membro também do Núcleo de Estudos Africanos do Recôncavo da Bahia (NEAB). Bolsista do CNPq, com o Projeto Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Políticas de Gênero e Sexualidade.

³Lobolo é uma prática tradicional da cultura moçambicana na qual o noivo oferece uma compensação material família da noiva, para que assim o casamento possa acontecer.