Por Suzana Varjão
 
Um  dos mais destacados juristas  brasileiros, Márcio Thomaz Bastos  acaba  de ser admitido como defensor da  política de reserva de vagas  para  negros nas unidades de ensino  superior do País. Ao adotar o  sistema de  cotas, a Universidade de  Brasília (UnB)    foi contestada pelo Partido Democratas (DEM), que ajuizou ação no    Supremo Tribunal Federal (STF), arguindo a inconstitucionalidade da    medida. O ex-ministro da Justiça pediu para ser ouvido sobre o assunto    no STF, que acatou a solicitação.  
A  UnB decidiu adotar o sistema de cotas  em 2004, porque “a  universidade  brasileira é um espaço de formação de  profissionais de  maioria  esmagadoramente branca”, e, “ao manter apenas  um segmento  étnico na  construção do pensamento dos problemas nacionais, a  oferta de  soluções  se torna limitada”, como registrado no site da  instituição.   Entretanto, o DEM entrou com uma Arguição de Descumprimento  de Preceito   Fundamental (ADPF), alegando violação de princípio  constitucional.
 
AMICUS CURIAE – A ADPF 186   está para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, mas a Associação    Nacional dos Advogados Afrodescendentes (ANAAD), representada,    gratuitamente, pelo escritório de Márcio Thomaz Bastos, solicitou a    admissão formal de sua intervenção no processo, na qualidade de Amicus    Curiae. Um dos principais articuladores da estratégia, o presidente da    Fundação Cultural Palmares (FCP), advogado Eloi Ferreira de Araujo,    comemorou o deferimento do pedido.  
O  Amicus Curiae (“Amigo da Corte”, em  latim) está inserido na   legislação brasileira – mais precisamente, no  parágrafo 2º, artigo 7º   da Lei 9.868,    de 1999. Resumidamente, consiste numa figura jurídica que, não  fazendo   parte de determinado processo, solicita audiência em  julgamentos de   grande relevância para a sociedade, com o intuito de  prover os tribunais   de informações sobre questões com grau elevado de  complexidade, como é  o  caso do sistema de cotas. 
 
ARTICULAÇÃO –  Carlos  Alves Moura, advogado e  ex-assessor da Secretaria Especial de  Políticas  de Promoção da  Igualdade Racial da Presidência da República,  acompanhou  de perto o  trabalho de articulação do então titular da  SEPPIR, Eloi  Ferreira de  Araujo, junto à ANAAD e ao jurista Márcio  Thomaz Bastos. E  também  comemora o resultado positivo da petição  encaminhada ao ministro  do STF  e relator do processo, Ricardo Lewandowski.  – Conseguir esse patrocínio de um dos maiores juristas do País é um ganho muito grande para a causa, resume Moura.
 Eloi  Ferreira explica que a decisão de  buscar o apoio de Thomaz  Bastos  deveu-se ao risco de reversão do  processo de inclusão da  população  descendente de africanos escravizados  nas universidades  públicas  brasileiras. Após a instituição da reserva de  vagas para  negros, pela  UnB, e do grande debate aberto a partir da  adoção desta  medida, várias  outras unidades aderiram ao sistema (ver  quadro abaixo),  aumentando  consideravelmente o número de  afrodescendentes na rede de  ensino  superior do País.
 
ARGUMENTOS –  Foi  exatamente o impacto social  provocado pela decisão do STF que a  ANAAD  arguiu, para afirmar a  relevância da matéria a ser julgada e  justificar o  recurso do Amicus  Curiae. Os efeitos negativos sobre as  universidades  que já adotam o  sistema de cotas e os matriculados e  diplomados a partir  deste critério  de seleção são algumas das  consequências listadas pelos  advogados, e  que deverão ser levadas em  consideração pelos ministros do  Supremo.
 
Para além do mérito da questão sob análise, a ANAAD questiona a validade do instrumento jurídico empregado pelo DEM. Pela Lei 9.882/99    (artigo 4º, parágrafo 1º), a ADPF só pode ser usada quando não há    “qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”. Na petição, os    advogados lembram que “à época da propositura da ação, sustentava-se que    a ADPF seria o único meio para questionar a constitucionalidade da    reserva de vagas por critérios raciais nas universidades”. 
 
ESTATUTO – A partir, porém, da entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010),    houve “uma mudança relevante no cenário legislativo, quando  comparados  o  momento em que a ação foi proposta e o momento atual. As  normas  sobre o  tema mudaram de tal forma que a ADPF perdeu seu sentido   original”,  argumentam. Se antes a política de reserva de vagas da UnB   tinha como  único norte a Constituição Federal, o Estatuto, agora, é o   seu  referencial direto.  
Mas  é no capítulo sobre as “Razões de  mérito” que se encontra o  cerne do  debate. Demonstrando que, “a despeito  das boas intenções  normativas”,  as estatísticas apontam desequilíbrios  gritantes entre  negros e  não-negros, argumenta-se que “a política que  tem como enfoque  apenas a  superação das distinções socioeconômicas não é  suficiente para   resolver o antigo problema da discriminação e do  preconceito”.
 
Chamando a atenção sobre a importância de não se confundir “a disctinctio   necessária à realização do princípio da igualdade de oportunidade com a    discriminação odiosa proibida pela norma constitucional”, o    documento-manifesto lembra que “é tarefa do Direito reconhecer critérios    legítimos de distinção, equiparando condições desiguais”. E sinaliza:
 “Somente  quando a igualdade formal se  traduzir em  igualdade real poderemos nos  orgulhar da consolidação da  nossa  democracia” (POCHMANN, em Retrato  das desigualdades de gênero e  raça).
  
 
 
 
 
O então titular da SEPPIR foi um dos principais articuladores da estratégia 
 
Trechos da petição
 
Leia,  aqui, alguns trechos da petição  encaminhada pela Associação  Nacional  dos Advogados Afrodescendentes  (ANAAD) e deferida pelo Supremo   Tribunal Federal (STF).
 
“[...]  Trata-se, a toda evidência, de uma  política que busca a  harmonia  social, criando condições para superar a  cultura  historicamente  arraigada de preconceito contra o negro. Nada tem  a ver  com incitação  ao ódio, nem com segregação, como nos temores  projetados  pelo  anacronismo de certo tipo de pensamento conservador.  Muito pelo   contrário. Odiosa é a discriminação fundada no preconceito  racial, não   os meios legítimos, jurídicos e eficazes para combatê-la  [...]”.
 
“[...]  Estamos falando de pessoas que  aguardam os resultados de um   compromisso histórico – o fim efetivo da  desigualdade entre brancos e   negros – e que sofrem as consequências de  um projeto inacabado [...]”.
 
“[...]  A abolição não foi acompanhada por  políticas capazes de  acolher os  libertos na sociedade brasileira, depois  de tantos anos  segregados.  Isso faz com que, até hoje, descendentes de  escravos sofram  na pele – e  por causa da cor de sua pele – as  consequências desse  período [...].  Afinal, o estatuto de pessoas  juridicamente livres não  garantiu uma  transformação substancial na  condição de excluídos dos  antigos  escravos” [...].
 
“[...]  É preciso finalmente que o mundo  jurídico desperte para a  consciência  ética da vulnerabilidade da  condição social do negro”  [...].
 
“[...]  Mudar esse estado de coisas não é  tarefa fácil. A  transformação não  aconteceu nem acontecerá de um dia  para o outro.  Tampouco será fruto  da mera passagem do tempo” [...].
 
“[...]  A discriminação positiva introduz  tratamento desigual para  produzir,  no futuro e em concreto, a igualdade.  É constitucionalmente  legítima,  porque se constitui em instrumento para  obter a igualdade  real” [...]
 
“[...]  Não é a idéia biológica de ‘raça’  que autoriza, no caso, a  distinção  no acesso às vagas do ensino  superior, mas simplesmente a  condição  social mais vulnerável associada  ao negro pobre, vítima  histórica de  preconceito e discriminação [...]”.
 
“[...]  Não é mais possível, neste estágio  da evolução do pensamento   jurídico, confundir a disctinctio necessária à  realização do princípio   da igualdade de oportunidade com a  discriminação odiosa proibida pela   norma constitucional [...]”.
 
“[...]  O fenótipo pode ser objeto de uma  distinção favorável, sem  que  caracterize ‘ racismo às avessas’, porque  está associado ao fato de   uma situação histórica de marginalização em um  país duramente marcado   pela escravidão. Ser negro, no Brasil, indica  mais do que uma   característica física – é também uma condição social  [...]”.
 
“[...]  O critério de distinção, no caso da  reserva de vagas para  negros,  remete a uma condição social de  preconceito e discriminação   identificável pelo fenótipo [...]”.
 
Márcio Thomaz Bastos
 
Márcio  Thomaz Bastos vinculou, desde  cedo, sua atividade  profissional à  militância política. Trabalhou em  quase mil julgamentos,  quase sempre  defendendo gratuitamente acusados  que não tinham  condições de arcar  com honorários advocatícios, tendo  atuado na  acusação dos assassinos  de Chico Mendes – um dos vários casos  de grande  repercussão dos quais  tomou parte.
 
Fundador  e chefe de um dos mais  respeitados escritórios de advocacia  do País,  deixou o grupo em 2003,  para ocupar o cargo de ministro da  Justiça,  destacando-se, dentre outros  feitos, pela reestruturação da  Polícia  Federal, pela aprovação da  Emenda Constitucional 45 (Reforma do  Poder  Judiciário), pela defesa do  Estatuto do Desarmamento e por ter  dado  início à reestruturação do  Sistema Brasileiro de Concorrência.
 
Recentemente,  ao lado de profissionais  liberais, fundou o Instituto  de Defesa do  Direito de Defesa (IDDD).  Dentre outras bandeiras de luta  do movimento  social brasileiro, Márcio  Thomaz Bastos defende o controle  externo do  judiciário e a ampliação do  sistema de penas alternativas.
 
ANAAD
 
A  Associação Nacional dos Advogados  Afrodescendentes (ANAAD) é uma   organização civil sem fins lucrativos,  que tem por objetivo “incentivar   o desenvolvimento social, cultural,  moral e educacional dos   afrodescendentes”. Fundada há 10 anos e sediada  na cidade de Salvador   (BA), congrega advogados, estudantes e professores  de Direito com   ascendência africana e “ligados à causa da defesa dos  direitos humanos   da comunidade negra”.
 
Dentre  os princípios estabelecidos em  seu Estatuto Social, estão  “defender a  valorização das origens étnicas  dos afrodescendentes, bem  assim, seus  valores culturais, políticos e  religiosos [...]”; e  “desenvolver  políticas e ações efetivas e  afirmativas em defesa dos  direitos  inerentes à cidadania,  primordialmente, dos associados   afro-descendentes, bem assim, de todos  os demais cidadãos”.
 
Os  princípios registrados no Estatuto da  entidade vêm se traduzindo  em  ações efetivas, com a realização de  cursos de capacitação para   advogados afrodescendentes e atendimento  jurídico gratuito para   africanos, afro-brasileiros e pessoas de baixa  renda em geral – o que   confere à ANAAD a representatividade e a  legitimidade exigidas pelo   Supremo Tribunal Federal para a admissão como  “Amigo da Corte”.
 
Grande  referência da política de  valorização dos advogados  afro-brasileiros,  Sílvia Cerqueira também  colaborou para a iniciativa.  Uma das  fundadoras da Associação, Cerqueira  atua na ANAAD e preside a  Comissão  Nacional de Promoção da Igualdade do  Conselho Federal da Ordem  dos  Advogados do Brasil (OAB). Sua liderança  política levou-a à  segunda  suplência do Senador Walter Pinheiro (PT-BA),  também atento à  questão  racial.
 
Ações afirmativas & Cotas
 
Ações  Afirmativas são políticas públicas  instituídas com o objetivo  de  promover a ascensão de grupos socialmente  vulneráveis, combatendo as   desigualdades resultantes de processos de  discriminação negativa. A   reserva de vagas para estudantes negros nas  universidades públicas do   País é uma destas políticas, e está prevista  na legislação brasileira.
 
Foi  a Lei 3.708/01 que institui o  sistema de cotas para estudantes   autodeclarados negros ou pardos,  reservando a este segmento um   percentual de 40% das vagas das  universidades estaduais do Rio de   Janeiro – o que passou a ser aplicado  no Vestibular de 2002 da   Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da  Universidade Estadual do   Norte Fluminense (UENF).
 
Mas  foi a decisão da Universidade de  Brasília (âmbito federal), de  adotar  o sistema, que colocou o assunto no  centro do debate nacional,   provocando a adesão de outras instituições e  aumentando   consideravelmente o número de estudantes negros na rede  pública de   ensino superior do País. Hoje, os cotistas correspondem a  18,6% dos   alunos da UnB, o que equivale a quatro mil estudantes negros.
 
Universidades que adotam as cotas
 
Veja, abaixo, a relação de algumas das universidades brasileiras que têm programas de ação afirmativa
 
Universidade de Brasília
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Universidade Estadual de Montes Claros
Universidade do Estado da Bahia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Universidade Federal do Acre
Universidade Federal de Alagoas
Universidade Estadual da Paraíba
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal de Goiás
Universidade Federal do Espírito Santo
Universidade do Estado de Minas Gerais
Universidade Federal do Maranhão
Universidade Federal do Pará
Universidade Federal da Paraíba
Universidade Federal do Paraná
Universidade Federal de Pernambuco
Universidade Federal do Piauí
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia
Universidade do Estado de Mato Grosso
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Universidade Estadual de Londrina
Universidade Federal de Santa Catarina
Universidade Federal de Juiz de Fora